A hipnose é ainda um tema muito controverso. Há alguns anos tenho me dedicado a pesquisá-la. Há muita confusão, mistificação e pseudociência acerca do tema. Reflexões de cunho funcional e conceitual devem ser realizadas. Pretendo, nesta coluna, tecer algumas delas ou mesmo levantar algumas questões. Para tanto, inicio aqui, com a transcrição da introdução do livro "Hipnose: fato ou fraude?", de minha autoria
A hipnose é um mito. Gosto desta expressão. Ela resume muito bem o volume de desconhecimento acerca da hipnose e o quanto de fascinação pode despertar. Por mito podemos conceber aquilo que é fabuloso, espetacular, mas que também já não corresponde precisamente à verdade. Ao mito sobra eficácia e falta verdade. O que é da dimensão de um mito já extrapolou as fronteiras da verdade para incursionar no mundo das “estórias mal contadas” ou muito bem contadas, pois que é fabuloso e extremamente instigante. Isto contudo, não impede uma reflexão crítica e sensata sobre este mito moderno, a hipnose, e a tentativa de compreendê-la de modo sincero e racional, direcionando nosso olhar para além do saturado campo de mistificações em que ela sempre esteve mergulhada.
Antes de Franz Anton Mesmer (1734-1815), pai da hipnose moderna, os estados de transe e seus modos de indução estavam relegados ao plano do sagrado, do sobrenatural. Antes do advento da medicina como um corpo específico e privilegiado de conhecimentos e práticas científicas para a produção ou restabelecimento da saúde, a cura era um processo que estava sempre ligado ao sobrenatural. A cura passava invariavelmente pela religião.
Foi Mesmer quem definitivamente conduziu a prática hipnótica do campo religioso para o campo médico. A aura de magia, de bruxaria, de cura milagrosa ou divina, sempre esteve junto das práticas xamanísticas ou de curandeirismo. O que antes pertencia ao plano do inexplicável, adentrou o campo da ciência e de lá para cá tem sido várias as tentativas de compreensão racional do que seja este fenômeno. Contudo, como sempre estiveram e ainda estão intimamente ligados ao campo das religiões, os estados de transe ainda habitam um imenso terreno de desconhecimento. A fabulação seria quase como um mecanismo automático de compreensão disto que sempre foi explicado ou compreendido à luz dos mitos e das religiões.
A hipnose é muito mistificada mesmo nos meios que advogam para si alguma compreensão ou validação científica. Ainda hoje não faltam equívocos acerca do que ela é ou seria. Menosprezada por alguns ou divinizada por outros, circula no imaginário como um fato sobre o qual pouco se sabe o que seja. A tendência é o desconhecimento e julgamentos precipitados ou repletos de interesses outros (financeiros, ideológicos, corporativistas) que não a busca sincera e humilde do saber.
Os que exageram seus poderes e que se fazem ouvir a plenos poderes da difusão nos meios de comunicação de massa, estão geralmente mais interessados em autopromoção financeira e pessoal do que em esclarecer o que é a hipnose. Quanto mais desconhecimento, quanto mais obscuridade, melhor, pois assim podem se revestir da aura de saberes e talentos ocultos, revelados somente por um processo especial de aprendizagem, o qual ultrapassaria os intercâmbios comuns entre os seres humanos. Assim, a própria técnica, sempre demonstrada em favor da ocultação do que seja, perde-se totalmente em meio ao mar de manipulações que a fabricam como mais uma ilusão a ser vendida e consumida por nossa sociedade de tempos em tempos.
Sim, o truque, a surpresa, a ilusão, vendem. Muitos preferem a ilusão ao conhecimento. O gozo de ser iludido, o encanto, vende mais do que o esclarecimento. Há graça na ilusão. O benefício dadivoso, repentino, sem motivo e sem explicação, é cheio de graça, um presente de Deus. E, muitas vezes, o trabalho de conhecer é um processo de desilusão, de desencanto. Demonstra os limites de algumas realidades e provoca frustrações. Extinguem com alguns horizontes e criam outros. Mas, de tão apegados que estivemos àqueles, não nos abrimos para os novos.
Os estados hipnóticos, de transe, sempre estiveram presentes na história da humanidade, seja nos rituais religiosos, xamanísticos, festas, ou mesmo nas sociedades modernas, em eventos de massa e em todos aqueles que de alguma forma reproduzem as relações simbólicas originárias entre os homens. Na modernidade, contudo, a medicina se apropria das experiências de transe para tentar lhes conceder um estatuto de cientificidade. Fato que até hoje se encontra em curso: a tentativa de se abordar cientificamente o fenômeno da hipnose. Este livro possui objetivos que estão nesta direção: alguma compreensão sensata e racional do que seja a hipnose, suas aplicações, técnicas e limites.
Para tanto, como o leitor poderá perceber, a linguagem utilizada é muito clara. E não se trata de mais um livro sobre o assunto, o qual se reserva somente à tarefa de traçar o percurso histórico da hipnose, sem atrever-se a adentrar o fenômeno em relação ao que ele de fato seja. Algumas questões importantes são enfrentadas como, por exemplo, a distinção entre a hipnose e a encenação. Assunto evitado ou esquecido por grande parte dos autores da área. E esta talvez seja uma pergunta que todos se fazem, mas poucos decidem enfrentar, refletir a respeito. É necessário se perguntar sobre a legitimidade do transe hipnótico e em que medida ou ocasiões responde mais a pressões e expectativas grupais do que a uma verdadeira alteração de consciência. E se o fingimento, a encenação, podem ou não participar de um processo de transe.
Este livro opta pela desmistificação, pelo esclarecimento, sem reservas, sem receios de traçar o retrato da hipnose com simplicidade e contra toda e qualquer espécie de hermetismo ou ocultismo, seja ela um fato ou uma fraude. Busca constantemente compreender este fenômeno, seja em termos psicológicos ou por meio de evidências empíricas informais e experimentais. Não trata da hipnose como um fenômeno já dado, estabelecido, questiona e reflete constantemente sobre a sua natureza.
Dado o impacto geralmente produzido em todos os envolvidos, sejam hipnotizados, hipnotizadores ou observadores, a hipnose é algo que merece atenção. Seja ela um fenômeno neurológico, psicológico ou de coação social, são válidas as tentativas sensatas e sinceras de compreendê-la. Mesmo que a hipnose seja simplesmente uma farsa, não tenho dúvidas de que por meio dela podemos compreender melhor o que é o ser humano, seu psiquismo, e sua relação com os outros de sua espécie.
Se a hipnose é uma farsa, logo vem-nos à mente conceitos como ilusão, mentira, fingimento, histeria, narcisismo, obediência, alienação, coação social, credulidade. Se alguém se submete à dor extrema e assim não transparece. Ou expõe-se ao ridículo e de modo inesperado, o que pensar? Estamos falando de extremos, de ocorrências impactantes para os envolvidos. Devem então nos obrigar a repensar estes conceitos, os quais, no caso hipnose, parecem extrapolar seu sentido comum. A hipnose propicia, com grande freqüência, a emergência do absurdo. A este não temos como dar as costas.
Referência:
Facioli, A. (2006). Hipnose: fato ou fraude? Campinas: Átomo.
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